
Um olhar sobre Orlando de
Herê Aquino. Ou: de sentir o teatro
O trio de atores,
irretocável, junto ao ator-músico, postam-se assaz afinados, jogando em cena de
forma intensa, como um bailado. Sob o rigor da direção, não há sobras, gestos
inúteis, mas gestus, ações carregadas de sentido.
Por Rejane Reinaldo
Um chamado ao ritual é o que
nos sugere o espetáculo Orlando de Herê Aquino, a partir do texto homônimo de
Virgínia Wolf. Pela execução exímia e beleza da cena de abertura somos fisgados
já nos primeiros segundos. E não nos apartamos mais dali, daquele ritual, até o
final do espetáculo, de inacreditáveis duas horas e quinze minutos. Digo
inacreditáveis porque não sentimos o tempo histórico derramar-se. Talvez por
instalarmos em nós, ali, um tempo próprio da arte, guiados tão somente pelo
prazer.
A música produz signos e
espaços próprios. Emerge aberta, solta, sem necessariamente comentar, nem mesmo
fortalecer o que a cena subseqüente dirá. Impecável, traz à baila os
sentimentos da melodia, os silêncios dos acordes, as sutilezas da voz cantada
no teatro.
O figurino de Ruth Aragão é
exuberância explícita. Denota a criação das personagens imersas no tempo,
espaço e afetos. Imprime dinamicidade às cenas. Impõe o figurino como adereço
de ator, ou mesmo como parte dele. E adereço de cena como figurino, num jogo de
imagens que se sobrepõem, formando verdadeiros caleidoscópios das personagens.
Em Orlando a ambigüidade de gênero é marcada, cautelosamente, pelo figurino,
evidentemente, sob a direção certeira de Herê Aquino. E perpassa todo o
espetáculo. É o figurino que nos aponta, de primeiridade, no puro sentir, as
angústias e alegrias de Orlando, a sua condição de mulher, a sua condição de
homem, a condição humana. Amplia o nosso olhar sobre os atores e suas ações no
campo dos afetos.
Os temas, amor e gênero, são
"humano, demasiadamente humano", não se prendendo à história, mas à
própria humanidade. A fala de Wolf é também a fala de Judith Butler, Elisabeth
Badinter, Simone de Beauvoir, Alexandra Kollontai... ou mesmo de Pentesilea, a
rainha das amazonas, de Kleist. É também a fala de Regina Melo, de Lina Prosa.
É a possante fala de Dina, a vaqueira de Canindé. É uma fala sobre o amor à luz
do gênero - como constructo histórico-social assentado no campo do afeto -,mas
de uma poesia estupenda, de tirar o fôlego.
Herê Aquino, na contramão do
contemporâneo, embrenha-se na exuberância do signo literário trazendo uma
poética deslumbrante, especialmente as falas de Orlando sobre o amor, sobre
amar. A diretora dialoga livre com o texto de Wolf - cheio de frescor, a
despeito de ter sido lançado em 1928. Mas, vez por outra, rastros do tempo
atual pululam, harmoniosos com a escrita do século XIX da Inglaterra. Talvez
para nos dizer que a vida, nômade e livre, não acolhe rótulos nem amarras. E nem
a arte se prende aos séculos. Evoé!
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